quinta-feira, 24 de julho de 2008

Estrelas, botas, lixão, margarina...

Nem acredito que estou em casa a essa hora (20:40). Ouvindo o jogo do Palmeiras na TV – que está sem imagem há alguns dias. A empregada está de férias; minha mãe foi viajar; a filha mais velha, que me ajudaria a resolver esse e outros pepinos (às vezes ela dá dois tapas na televisão e a imagem volta), foi para a casa da avó para cuidar dos cachorros dela. Enquanto isso, a ração do meu acabou, as plantas estão morrendo de sede, já não há colheres limpas na gaveta e eu estou sempre atrasada para algum compromisso. O dia termina razoavelmente sossegado, mas a música-tema de hoje de manhã seria:



Nada assim tão dramático, mas o refrão dos Inocentes volta e meia me ocorre como trilha sonora...

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Hoje de manhã fui ao lançamento da Exposição Filhos do Brasil, no Ibirapuera. São fotos selecionadas em um concurso promovido pelo IDECACE (Instituto para o Desenvolvimento da Criança e do Adolescente pela Cultura e Esporte.), estão expostas em painéis muito grandes do lado de fora do Planetário, acompanhadas por frases de personalidades (como Paulo Freire e Betinho) e artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente (que faz 18 anos) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (que faz 60).

Cheguei um pouco antes da cerimônia de abertura e aproveitei para sentar um pouco no sol, perto dos painéis, observando as fotos e fazendo anotações (mais um milhão de idéias surgidas enquanto eu estava na moto). Um momento de trabalho e ao mesmo tempo de sossego, no ambiente deliciosamente calmo do Parque àquela hora da manhã (9 e pouco). Olhando para a Declaração dos Direitos, pensei em como um direito singelo como aquele – parar, pensar, trabalhar em silêncio em lugar agradável – é absolutamente estranho a tanta gente.

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Se eu pudesse mexer na Declaração, alteraria o artigo 17: “1. Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros”. Eu acrescentaria um “desde que”: “desde que essa propriedade não implique em danos a outros e prejuízos à coletividade”; “desde que a propriedade seja obtida legitimamente, sem agressão aos direitos dos demais”; “desde que o direito à propriedade não se sobreponha a outros direitos”...

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A abertura oficial foi dentro do Planetário, em cerimônia comovente.

Estive no Planetário três vezes: uma, para ver o espetáculo da projeção do céu da cidade, quando tinha 14 anos; outra, para participar de um debate no Dia Sem Automóvel do ano passado; e esta de hoje.

Um amigo que me acompanhou desta vez disse que estava tendo muitas lembranças da infância. “Muitas?”. Sim, o avô o tinha levado várias vezes. “Ele gostava de astronomia?”. “Não, gostava de agradar os netos!”. Sorriu, com saudade da infância e do avô.

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[Caramba, 4 a 2 no primeiro tempo! Que jogo é esse que não estou vendo!]

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Minha mãe e meu tio gostavam de astronomia. Ele chegou a comprar uma bela luneta, à qual acoplava uma câmera fotográfica e fazia fotos incríveis, reveladas no laboratório caseiro.

Em tempos de noites mais escuras e céus menos poluídos, subíamos ao terraço da casa da minha avó e minha mãe ficava apontando, a olho nu ou pelas lentes de aumento: “Nossa, como a Ursa Maior está visível hoje! Olha Andrômeda, que linda!” Eu olhava e não via ursa nenhuma, por mais que ela dissesse “ali a cabeça, ali o corpo...”. Só enxergava Cruzeiro do Sul e Três Marias; a Lua, Marte, Saturno...

Caraca, hoje em dia quem mora em São Paulo não tem a MENOR chance de ver um céu estrelado como aquele! Muito menos os que vi em Peruíbe (céu limpo, noite ainda mais escura), Ilha do Mel...

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A apresentação de hoje de manhã falava um pouco sobre isso: sobre o direito de ver um céu estrelado. E sobre a conexão que existe entre nós e as estrelas; a matéria de que somos feitos e as substâncias produzidas no seu interior. “Alguém pode se perguntar: o que eu tenho a ver com as estrelas? Tudo. Somos “filhos” delas, de certa maneira. E alguém pode pensar também que não tem nada a ver com as crianças na rua, maltratadas, em perigo. Mas temos tudo a ver com elas. Elas também são “filhas das estrelas”. Somos da mesma matéria. Somos todos filhos do Brasil”.

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A foto que ficou em primeiro lugar chama-se “Chute na infância”. Mostra um menino engraxando botas. O fotógrafo, Pedro Brandimarte, há muito tempo se envolve com crianças e adolescentes que vivem pelas ruas do centro, especialmente na Praça da Sé. E lembrou o comentário incrédulo que ouviu de um deles anos atrás, antes de entrar para conhecer um lugar de acolhida: “É verdade que aí dentro tem cotonete?”

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Lembrei da Esmeralda, autora de “Por que não dancei”, contando que imaginava que margarina era uma coisa do outro mundo, esplendidamente deliciosa, por causa dos comerciais que mostravam famílias felizes na TV. Vivendo na rua, dependente de crack, ficava deslumbrada com aquilo. No dia em que pôde comer margarina, foi uma decepção.

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Lembrei também de um poema da Elisa Lucinda, em que ela se desespera de pensar: o que fazem as meninas que vivem na rua quando menstruam?

Absorvente é que elas não têm.

É de doer mesmo. E a gente nem pensa nisso.

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O segundo lugar mostra os olhos de um menino do Vale do Jequitinhonha – uma espécie de monumento à vergonha (ou falta de vergonha) nacional. O terceiro, meninos no topo de um lixão.

No evento, um grupo de percussão (muito legal) cantou “eu/ sou brasileiro/ com muito orgulho/ com muito amor”... Sou, mas com muita aflição também. E fiquei com vontade de puxar um outro canto de arquibancada: “ahá/ uhu/ o lixão é nos-so”. Lixão é o fim da picada. O lixão é meu, é seu, é do prefeito, do governador, do presidente. Dos secretários, dos ministros. Das empresas. Como é que a gente pode tolerar lixão? Fingir que não existe, que tá tudo bem? E não empurra pra baixo do tapete, não: faz uma pilha enorme e deixa os pobres remexerem para pegar o que interessa, o que ainda tem valor.

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A exposição fica no Ibirapuera até 24 de agosto.

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Eu ia contar um pouco de cada um dos últimos 20 compromissos, mas hoje vou ficar por aqui.