segunda-feira, 28 de julho de 2008

Tão de sacanagem

Deu no Estadão: “Sem propostas concretas, os candidatos à Prefeitura arriscam palpites sobre as ciclovias. São favoráveis, na maioria, ao uso de bicicleta como meio de transporte. Mas não há um plano concreto para que São Paulo receba ciclovias e ciclofaixas”.

COMO ASSIM, sem propostas concretas? Na verdade, todos os candidatos – exceto a Anaí, do PCO, e o Levy, do PRTB, que não pretendem investir nas bicicletas como meio de locomoção – dizem bem concretamente o que pretendem fazer em relação às bicicletas. E isso em versão resumida pelo jornal; talvez as idéias sejam ainda mais desenvolvidas e elaboradas do que aparecem ali (falo por mim – duas semanas atrás, respondi por email uma pergunta sobre bicicletas para o Estadão, em que detalhava várias propostas. Não usaram).

O plano concreto, resumidamente, é o seguinte: encomendar o projeto de um sistema cicloviário, prevendo pistas para circulação (ciclovias ou ciclofaixas), rotas sinalizadas, bicicletários e paraciclos, especialmente junto a terminais de trem, metrô e ônibus. A prefeita ou prefeito não tem de saber fazer uma ciclovia ou ciclofaixa tanto quanto não precisa fazer o projeto de um viaduto – tem engenheiro pra isso... (Eu tenho um Caderno Técnico da ANTP, Associação Nacional de Transportes Público, que detalha vários tipos de projetos. E a CET também tem estudos, assim como a Emurb, o Grupo Bicicletas, algumas Subprefeituras... Enfim, como eu disse ao jornal, o que falta é mandar fazer!

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Não são só a Anaí Caproni e o Levy Fidélis que não botam fé em bicicletas como meio de locomoção. Em um debate na Casa da Cidade, uma mulher disse que isso era “coisa de burguês”. Alguns engenheiros de tráfego acham que “é impossível”, e uma urbanista disse, no Opinião Nacional, que esse negócio de bicicletas é “mito”.

Se não querem defender a idéia de trocar carro por bicicleta, ok (eu defendo). Mas não podem esquecer que 300 mil pessoas, no mínimo (o dado é de 2002), usam bicicleta diariamente para se locomover. Ainda que ninguém mais resolva circular por ai pedalando, esses centenas de milhares precisam de condições mais seguras. E tem alguns estudantes da USP, arquitetos, médicos, etc. (“burqueses”), mas tem muito garçon, pedreiro, porteiro, segurança, entregador...

Seria ótimo que mais burgueses aderissem, aliás. Até para se contrapor à história de carro como símbolo de status. Na Europa, todo mundo acha lindo ver o diretor da empresa pegando o metrô com o jornal debaixo do braço, ou a empresária pedalando para o trabalho com a sandália de salto na mochila. Aqui, é feio, é coisa de pobre ou de excêntrico...

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Sinais evidentes dessa cultura: na Daslu, pelo que dizem, é impossível entrar a pé. Só de carro. Ou seja: 1) O lugar é só pra rico, mesmo (ah, vá). 2) Rico não anda a pé.

E quando um jornal perguntou como os candidatos a prefeito de locomovem por aí, um coordenador da campanha da Marta disse, com orgulho: “Ela pode andar até de Fusca; a pé, ela não fica”.

Ele quis mostrar dinamismo, eficiência, organização. Mas chega a ser um ato-falho: por acaso seria um problema grave a candidata ficar a pé? É feio?

Baldes de água fria

Toda semana a gente recebe um pedido de socorro: “Estão agredindo os moradores de rua, jogando água, spray de pimenta, dando borrachada!”

É um problema tristemente recorrente nos últimos tempos. Na hora de limpar as ruas, as pessoas que estão dormindo, embrulhadas em seus cobertores, são tratadas como lixo. Tacam água sem dó. Um absurdo.

Hoje o movimento da população de rua fez (mais) uma manifestação pelas ruas do centro, pedindo paz, pedindo respeito. Havia faixas e cartazes com frases como “Não somos contra a limpeza pública”; “Limpeza urbana ou limpeza humana?”.

A caminhada saiu da Praça da Sé, fez uma escala diante da Associação Comercial de São Paulo, outra diante dos escritórios do Governo do Estado na rua Boa Vista, uma parada diante da Bovespa e outra diante da Bolsa de Futuros, mais uma pausa na Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social, na Secretaria de Coordenação das Subprefeituras e na Prefeitura.

Em cada um desses lugares, a intenção era apenas entregar um manifesto e o troféu “Cidade Limpa, Consciência Suja”. Ninguém queria agredir, ocupar, depredar, e isso ficava bem claro nas falas no carro de som. “Viemos em paz; queremos paz”. “Não tenham medo. Ninguém vai entrar à força. Queremos que alguém venha receber o troféu”.

Acompanhando os manifestantes, garantindo que a rua continuasse aberta para o tráfego de veículos, PMs de bicicleta. Calmos, respeitosos, nem carrancudos estavam. Ainda bem. Pareciam até solidários àquela gente desgrenhada, desdentada, caminhando lentamente.

Na ACSP e na Bovespa, depois de alguma insistência, deu certo – uma pessoa desceu para receber o folheto e o troféu. Nos outros lugares, não. E a maior burrice, insensibilidade, falta de tato (e até de esperteza) se deu na frente da prefeitura.

De novo, o discurso deixou claro: “Não queremos invadir. Queremos que alguém venha receber o manifesto”. Nada. Ninguém veio. O povo insistia com palmas e gritos, à distância segura da entrada do prédio (até porque havia grades e GCMs). Não voou uma pedra, um pão velho, nada.

O movimento pediu, então, que uma comissão de 4 pessoas pudesse ir até o setor de protocolos, na recepção, entregar o manifesto – um representante dos catadores, um do movimento de moradia, um dos camelôs, um do movimento da população de rua. Os quatro se descolaram da massa e se dirigiram a uma entrada lateral, para não deixar nenhuma dúvida de que entrariam sozinhos, sem o grupo. Longos minutos de espera e... Nada feito. Bateram que bateram o pé que só entraria um.

Santa teimosia, Batman. Enquanto esperavam sob o sol, cansadas, com fome e sede, algumas pessoas foram se irritando, perdendo a paciência, ficando tensas. E não é difícil entender que são homens e mulheres muito próximos da raiva e da revolta, que não custariam muito para perder a cabeça e querer pular a grade de meio metro que as continha. As lideranças se mantiveram firmes, pedindo atenção e a entrada da comissão. Não teve jeito. A inspetora da Guarda Civil que negociava com eles insistia na entrada de um só.

É uma marca triste dessa gestão: a insensibilidade. Como disse ironicamente uma senhorinha, “podia ter descido um chefe-de-gabinete, um secretário, nem que fosse pra mentir!”.

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Diante da Secretaria das Subs e da Prefeitura, os manifestantes jogaram água e sabão para lavar o chão. “Eles querem limpeza? Aí está!”

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Ouvido na manifestação:

“Na rua tem pedreiro, tem encanador, tem eletricista. O povo da rua quer trabalhar!”

“A Bolsa vai cair! Vai cair o euro, o dólar, vai subir a população de rua! A gente vai ficar aqui na porta até alguém vir receber o troféu. Olha a queda nas ações!” (um líder ao microfone – e é um cidadão “de rua” também)

“Vamos jogar água na cama do Kassab!” (um manifestante).

“Por que esse movimento?”, perguntou uma mulher que passava.
“Porque à noite sai o pessoal lavando a rua e joga água em quem tá dormindo na calçada. E se eles reclamam, tomam spray de pimenta, cacetada..”.
“Que horror!”

“O que eles querem?”, perguntou um repórter.
“Não querem ser tratados como lixo. Não querem só albergue (e tem poucos!); querem atividade durante o dia, querem atendimento em saúde, tratamento em saúde mental. Querem ser respeitados . Que lembrem que embrulhado no cobertor tem gente”.

“A Assistência Social dá cobertor, a equipe de limpeza molha e a polícia joga no lixo!” (outro líder no carro de som).

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Eu continuo não acreditando que o prefeito ou o Andrea Matarazzo (Secretário das Subprefeituras, que leva a fama por todas essas arbitrariedades) mandem jogar água em quem está dormindo na calçada. Aliás, tenho certeza que não fazem isso. Aposto um braço. Mas se não dão ordens claras, firmes, sem deixar margem de dúvida, de que NÃO É para tratar a população de rua com brutalidade, erram por omissão. Ou falta de controle.

Essa população é tratada como se estivesse de sacanagem; como se ficasse na rua só pra contrariar, espezinhar, sacanear a prefeitura e o Viva o Centro... Parece que estão na rua porque estão a fim... “Mas tem gente explorando politicamente essas pessoas”, dirão alguns. E se tiver, isso faz dessas pessoas um inimigo a combater??

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É verdade que muita gente na rua se recusa a ir para um albergue. E por que? Por vários motivos. Às vezes, por paranóia. Às vezes, por medo mais do que justificado... Alguns não querem ir porque querem fumar e beber, ficar perto de seus cães, tomar conta das carroças... Ficar perto dos amigos e da família. Parece frescura? Então coloque-se no lugar deles. Fumar e beber são praticamente as únicas formas de prazer a seu alcance. Um prazer nocivo, é claro – mas se é difícil para um indivíduo “classe A” abandoná-lo, por que seria fácil para eles? E se você chega a um hotel para passar as férias e informam que você vai ficar em um prédio e sua namorada em outro, que suas coisas têm de ficar do lado de fora, o que você faria?

Não é fácil lidar com essa questão, que é muito complexa. Mas a última coisa capaz de resolvê-la é criar (ou deixar rolar) uma situação de confronto nas ruas. A administração precisa resolver essa sua esquizofrenia – enquanto investe em escritórios de inclusão, AMA para população de rua e outros programas dessa natureza, deixa o carro-pipa virar bicho-papão desse povo. Que já tem tanta dificuldade para confiar em quem quer que seja, e só fica mais arredio.